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Justiça reconhece transfobia institucional e condena Estado de São Paulo por violar identidade de mulher trans
Decisão apontou discriminação institucional em defesa apresentada pelo Estado e destacou a importância da linguagem na garantia da dignidade de pessoas trans
A Justiça de São Paulo condenou o Estado a pagar R$ 30 mil por danos morais a uma mulher transexual que foi vítima de transfobia ao buscar tratamento de hormonização pelo Sistema Único de Saúde – SUS.
Segundo o processo, em uma ação anterior na qual buscava acesso à hormonioterapia pelo sistema público, a defesa apresentada pelo Estado ora a tratou como “autor”, ora como “autora”. Além disso, seu nome de registro masculino foi destacado e sua identidade de mulher trans chegou a ser descrita como uma “doença”.
O Estado de São Paulo argumentou que o erro decorreu da padronização de peças e do uso do nome de registro na inicial.
A decisão do Juizado Especial Cível e Criminal de Jales considerou que as justificativas apresentadas não afastam o dever de cuidado, sobretudo diante da vulnerabilidade da população trans. O juízo entendeu que as expressões utilizadas pelo Estado foram discriminatórias e configuraram violação de direitos humanos.
Perspectiva histórica
Para a Justiça paulista, o uso indevido de termos masculinos e a patologização da identidade de gênero da autora reforçam estigmas que historicamente excluem e marginalizam mulheres trans, especialmente mulheres trans negras.
“Considerar que a condição de mulher transexual significa uma doença é repetir as práticas históricas que relegam as mulheres transexuais à condição de pessoas anormais, de pessoas que merecem um tratamento, de pessoas que poderiam voltar a ser normais por meio de terapias discriminatórias, a uma tal de ideologia de gênero que nada mais é do que o uso da linguagem para discriminar, desconsiderar a existência e, em última análise, desumanizar em vida grupos historicamente discriminados”, diz um trecho da sentença.
A decisão destaca ainda que, conforme o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, as decisões devem considerar a desigualdade estrutural que afeta pessoas trans. E cita a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.275, do Supremo Tribunal Federal – STF, que garante a retificação de nome sem exigências médicas, e afirma que a igualdade de gênero impede que o Estado trate uma mulher trans como homem ou como doente. Estes parâmetros levaram à conclusão de que houve discriminação grave.
“O Estado de São Paulo impediu que a autora, em um processo judicial, desenvolvesse o projeto que dá sentido à própria existência, o que caracteriza inegável dano ao projeto de vida digna. Ser e desenvolver-se como mulher transexual compõem o projeto existencial que o Estado deixou de assegurar e que o Poder Judiciário, por meio desta sentença, pretende restabelecer”, pontua a decisão.
Conduta grave
A advogada Bianca Figueira Santos, doutoranda e mestra em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF, avalia que o caso evidencia a gravidade da conduta adotada pelo Estado no âmbito do processo anterior.
“A linguagem utilizada pelo Estado ao tratar a autora, mulher trans, de forma masculina e classificar sua identidade de gênero como doença não se configurou como um simples erro formal ou resultado de padronização de peças processuais, mas como uma ofensa grave à identidade da requerente. Trata-se de discriminação institucional, pois, por meio de seus atos – no caso, documentos judiciais e contestação –, o Estado de São Paulo contribuiu para marginalizar e violentar simbolicamente a mulher trans”, afirma.
Militante LGBTQIAPN+, ela destaca o impacto social da linguagem adotada pelo Estado ao descrever a transexualidade como “doença” e tratar uma pessoa trans de forma incompatível com sua identidade de gênero.
“Essa linguagem não é neutra e carrega um histórico de patologização que sustentou políticas de exclusão e formas de violência médica e social. O sistema de Justiça deveria ser um espaço de proteção de direitos, mas, ao adotar termos ofensivos ou incorretos, produz o efeito contrário: humilha, deslegitima a pessoa, reforça sua vulnerabilidade e amplia o sofrimento, em vez de repará-lo”, pontua.
Violência simbólica
Segundo a especialista, a violência simbólica praticada por instituições produz efeitos tão nocivos quanto a violência material, ao gerar trauma, revitimização e reforçar a mensagem de que determinadas identidades não são válidas.
“Negar o nome social, os prenomes ou a identidade de gênero é negar a própria existência da autora enquanto sujeito de direitos. Isso transmite a ideia de que sua identidade é ‘duvidosa’, ‘inferior’ ou ‘não reconhecida’ pelo Estado, o que, por consequência, legitima socialmente outras formas de violência e discriminação”, explica.
Ela acrescenta ainda que o caso evidencia o impacto coletivo da decisão, que vai além dos limites do processo individual.
“A decisão mostra que o sistema pode corrigir suas próprias falhas, proteger a dignidade e a identidade de pessoas trans e, assim, encorajar mais pessoas dessa população a reivindicar seus direitos, reduzindo o efeito silenciador da violência institucional”, afirma.
Direito e Arte
Além de reconhecer a gravidade da violação à identidade de gênero de uma mulher trans, a decisão da Justiça de São Paulo também se destaca pelo uso de referências artísticas e literárias que enriquecem e aprofundam sua fundamentação.
O magistrado responsável pelo caso recorreu a um verso do poeta e dramaturgo William Shakespeare para ilustrar a violência simbólica de negar o nome de uma mulher trans. “Quando se chama uma mulher trans de homem, quando se atribui a uma mulher trans um nome masculino, esquece-se da advertência de Shakespeare: ‘O que significa seu nome? Se a rosa tivesse outro nome, teria outro perfurme?’”, diz o trecho da sentença.
O julgador destacou que não vivencia essa experiência, mas afirmou ter buscado entender, por meio de estudos, a dor causada quando a identidade e o nome de uma pessoa – que expressam sua própria existência – são negados.
“Se não consigo, como homem branco e heterossexual, dimensionar a dor do preconceito de uma mulher trans negra, preciso me apoiar na poesia, em que, mergulhando no humanismo, tento sair de mim e sentir a dor do outro. E, estudando este processo e várias autoras e autores (incluindo mulheres trans) que tratam do tema, pude sentir, ao menos em parte, o que é a dor de uma mulher trans sendo chamada de homem, de doente, com a subtração do próprio nome que expressa a existência”, afirmou.
O poder da linguagem
O magistrado também mencionou a filósofa Judith Butler, referência dos estudos de gênero e autora da teoria queer, para reforçar que a linguagem tem força para sustentar ou ferir corpos. “Se a linguagem sustenta o corpo, pode também ameaçar sua existência”, diz a frase da estudiosa, usada como epígrafe da decisão.
Ele citou ainda o conceito de “escrivivência”, criado pela escritora Conceição Evaristo, que se refere a um tipo de escrita que nasce e se alimenta da vida e das experiências, especialmente das mulheres negras.
E trouxe, além disso, a ideia de “jurisvivência”, proposta pela juíza Flávia Martins de Carvalho, como um caminho para decisões mais sensíveis às experiências de grupos vulnerabilizados.
Referiu-se também a estudos de especialistas como Rodrigo Borba, Frida Monteiro, Dedê Fatumma e Adilson Moreira, que analisam como a patologização, o estigma e as microagressões estruturam a transfobia.
Tradução do sofrimento
A vice-presidente da Comissão de Direito e Arte do IBDFAM, Luciana Brasileiro, destaca que a decisão judicial fornece a resposta que a pessoa busca e, em situações como esta, o Judiciário não apenas responde à demanda, mas também reafirma a dignidade da autora.
“Reconhecer a transfobia institucional é a resposta que o Estado precisa dar para uma mulher que teve sua dignidade violada e trazer nesta decisão a poesia é humanizar este Estado e devolver à autora da demanda o que lhe foi sequestrado. A arte traduz o sofrimento e a exclusão dos grupos historicamente vulnerabilizados”, afirma.
Segundo ela, a arte oferece ao Direito a capacidade de expressar dimensões da experiência humana que muitas vezes não aparecem no chamado “juridiquês”.
“A arte oferece uma narrativa própria para que o corpo, a identidade e a voz dos grupos vulnerabilizados tenham espaço. Assim, o Estado não se resume a interpretar o Direito, mas também assume seu papel político de reconhecer a necessidade de ter mais empatia”, afirma.
Mudança pelo diálogo
A especialista concorda que a incorporação de conceitos como “escrevivência” e “jurisvivência” sinaliza uma mudança no modo como o Direito dialoga com outras áreas do conhecimento. Tais conceitos, para ela, servem de “mola propulsora para uma nova roupagem de um Direito mais humanizado e menos formal”.
“Esse distanciamento do formalismo aproxima as pessoas reais, que são as protagonistas dos processos e parece nos dar uma sensação de que o Estado cumpre seu verdadeiro papel. É o carregar consigo as marcas da vida, inspirando uma prática decisória que reconhece a pluralidade de experiências e a legitimidade das narrativas subalternizadas”, avalia.
E destaca que essa metodologia está em consonância com a ideia de “jurisvivência”, a qual “representa o Direito vivido, ampliando a interpretação dos direitos fundamentais, estimulando uma linguagem judicial mais inclusiva e sensível, e reafirmando o papel do Direito como instrumento de transformação social, e não apenas de conservação de estruturas”.
Processo 1006256-50.2025.8.26.0297
Por Guilherme Gomes
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